Passem palavra: ainda é possível fazer grandes discursos políticos. Sem papéis. Sem teleponto. Com alma. Com tudo a vir de dentro, a soar sincero, verdadeiro, arrebatador. Com uma retórica tão poderosa que nos remete para Cícero e para Shakespeare.
Podem ver esse discurso
aqui. O discurso que Gordon Brown fez ontem em Glasgow em defesa do Não no referendo escocês. Esqueçam Obama. Esqueçam Tony Blair. Esqueçam os speechwriters. Deixem-se arrepiar com um grande discurso à moda antiga. Concordem ou não com os argumentos e as conclusões, que saudades de ouvir algo assim, tão intenso.
(O seu a seu dono: foi Jaime Gama que esta manhã esteve aqui no Observador para gravar a sua conversa semanal com Jaime Nogueira Pinto – o
“Conversas à Quinta”, que esta semana é sobre os 40 anos do 28 de Setembro e da queda de Spínola – que me recomendou este discurso. Ouvi-o e estou agora a recomendá-lo aos leitores do Macroscópio. Vale a pena. Ferreira Fernandes também já falou dele na sua
crónica do Diário de Notícias: “Quem gosta de saber do mundo deveria reservar 13 minutos do seu tempo para ouvir o discurso de Gordon Brown”.)
Em parte por causa deste discurso, em parte porque boa parte dos melhores textos das últimas 24 horas na imprensa portuguesa foram sobre o referendo escocês, regresso, pelo terceira dia consecutivo, a este tema que está a dominar a actualidade.
Começo por uma
entrevista publicada hoje no Observador com Joseph Weiler, Reitor do Instituto Universitário Europeu de Florença. Ele esteve na Universidade Católica, para a "Opening Lecture" dos programas de "LL.M. Law in a European and Global Context", e explicou-nos porque é que pode haver um efeito dominó na Europa se a Escócia votar pelo Sim. Mais: “Se a Escócia caminhar para a independência, teremos uma Europa diferente, e não uma Europa melhor.” Tratando-se de um dos maiores especialistas europeus em direito comunitário, a sua opinião pesa. E, para ele, “este espírito independentista é antiquado, não-colaborativo, centrado nos interesses próprios e pouco sensato. De um ponto de vista moral não o vejo como um desenvolvimento positivo para a Europa.”
Uma
infografia do Expresso ajuda a perceber o que pode ser esse efeito dominó. Nem todas as regiões nele indicadas têm neste momento movimentos independentistas, mas em todos existem pulsões nacionalistas e identitárias. Mesmo que não viessem as existir as 37 novas nações e territórios inventariadas pelo Expresso, o actual mapa da Europa seria totalmente subvertido.
No entanto a verdade é que muitas das reivindicações nacionalistas têm pouco fundamento, ou então baseiam-se em mitos com escassa base histórica e cultural. É isso mesmo que nos explica Jorge Almeida Fernandes em “
Quando as paixões nacionalistas desafiam a realidade”. Como ele recorda:
Ao contrário da Inglaterra, a Escócia nunca foi conquistada, nem pelos romanos. A união que nasceu há 300 anos foi livremente acordada e começou pelo acesso ao trono de um rei escocês. Foi benéfica para ambas as nações. Os escoceses foram grandes actores do Império Britânico. Deles se dizia que eram "mais britânicos do que os ingleses". Que importa isso se o Império desapareceu?
A forma como na Escócia se chegou a este referendo resultou também de uma sucessão maus cálculos políticos, como recordou no Observador Rui Ramos em “
A Escócia, ou o fracasso da política no Ocidente”. Chega depois a uma conclusão:
As nações, os Estados, e os regimes não são assunto ao nível do governo ou da política económica. Mudar de governo é uma coisa, mudar de país é outra. Se uma separação escocesa reflectir simplesmente o desagrado com o actual primeiro-ministro, como Cameron receia, ou a ilusão welfarista inspirada pelo mar do Norte, isto significa que, no caso da Escócia, uma elite política dividida e confusa expôs o que era património da história e reservatório de princípios ao acaso dos humores e demagogias de um momento eleitoral. Não haverá talvez melhor exemplo do fracasso das actuais lideranças políticas no Ocidente.
Ainda no Observador, João Marques de Almeida considerou que “
Alex Salmond já ganhou”. Tudo porque o líder nacionalista conseguirá sempre algum importante ganho de causa vença o Sim ou vença o Não. Já Paulo Tunhas faz a defesa de “
A mais bela bandeira” e argumenta contra a possível dissolução do Reino Unido: “há coisas que não são só problema dos escoceses, nem sequer só do Reino Unido. Uma delas é o de nos arriscarmos a assistir à desintegração, face aos nossos olhos, de algo que representou, e representa, uma realidade admiravelmente excêntrica, a todos os títulos, nesta Europa de conformismos vários e neste mundo de vasta selvajaria, o Reino Unido propriamente dito.”
Num texto mais ideológico, Francisco Assis parte do caso escocês para falar sobre o que designa como “
Nacionalismos pós-modernos”. A sua leitura não se limita por isso ao Reino Unido, antes procura ser válido para várias regiões europeias:
Não estaremos apenas diante de reivindicações egoístas, como alguns sugerem, nem tão pouco perante o relançamento de antigas aspirações reprimidas. Estamos perante um fenómeno novo e, por isso, mesmo com um potencial de afirmação enorme. Basta vermos o que se passou há dias em Barcelona para constatarmos a densidade energética destas novas pulsões nacionalistas.
Acabo por hoje este Macroscópio numa altura em que os escoceses ainda estão a votar. Já os sócios do
Royal & Ancient Golf Club of StAndrews, que também fizeram hoje o seu referendo, mas sobre se as senhoras podiam ser admitidas no velhop clube só de homens, votaram pelo Sim: 85,5%, Não: 14,5%. Os resultados foram divulgados a tempo de os sócios ainda irem votar no outro referendo, mas desse só deveremos ter resultados definitivos lá para as seis ou sete da manhã. Por enquanto dura o suspense.
Uma nota final: o delicioso cartoon que encima esta crónica foi hoje publicado pela
New Yorker.
Boas leituras.